O projeto que resultou na elaboração e difusão deste banco de dados contendo a legislação da justiça militar brasileira se iniciou há dezoito anos, em 2005, quando uma equipe de pesquisadores, coordenados pelos professores Celso Castro e Maria Celina D’Araujo, no âmbito da Escola de Ciências Sociais (FGV CPDOC), debruçou-se sobre vasta documentação para tentar escrever a história da justiça militar, no contexto do seu bicentenário. O grupo de pesquisadores era integrado também pelas professoras Adriana Barreto de Souza (UFRuralRJ) e Angela Moreira (hoje professora da UFF, na época mestranda na FGV CPDOC) e pelo professor Renato Lemos (UFRJ), além de outros pesquisadores assistentes, pós-graduandos e bolsistas. Até então, sabíamos muito pouco sobre o percurso do que hoje é um foro especializado do Poder Judiciário brasileiro. Em geral, as reflexões sobre sua história estavam vinculadas à sua atuação como tribunal político durante a ditadura militar (1964-1985).

Estávamos diante, portanto, do desafio de compreender como o ramo militar do Poder Judiciário havia sido criado no Brasil, por quais transformações passara, de que forma estava estruturado, qual sua função, a quem se dirigia – civis e/ou militares –, como era composto, em que lugares do país funcionava de forma presencial, como se comportava em determinadas conjunturas. Enfim, tentava-se construir um olhar acerca de uma instituição quase bicentenária, sem muita bibliografia sobre a qual nos amparar. Diante de tamanho obstáculo, o caminho trilhado envolveu uma exaustiva pesquisa em arquivos, lendo e catalogando um extenso volume de documentos dispersos por instituições de guarda documental no Rio de Janeiro e em Brasília.

O ponto de partida

O ponto de partida da pesquisa foi o Alvará expedido em 1º de abril de 1808, por d. Fernando José de Portugal, criando o Conselho Supremo Militar e de Justiça (CSMJ). Entendia-se, pelo texto do documento, que tal instituição, aparentemente una, atuava com um caráter duplo, desdobrando-se em uma esfera administrativa e outra judicial. Como isso funcionaria na prática ainda estaríamos por descobrir.
O primeiro movimento, então, foi pesquisar na documentação que havia sido enviada do arquivo do Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília, para o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, consistindo na documentação produzida pelo órgão ao longo do século XIX. Contudo, havia um pequeno problema. Essa documentação não se encontrava catalogada e estava situada no âmbito do Fundo “Diversos GIFI Caixas e Códices” (BR RJ AN RIO OI). Assim, não restava outro caminho a não ser consultar os maços de documentos identificados como provenientes do STM. Dessa forma, foram esquadrinhados em torno de cem maços contendo um número considerável de documentos, sendo que, pelo menos, sessenta e um deles continham fontes que julgamos importantes para a compreensão da história da justiça militar. Um elemento que nos surpreendeu foi a constatação de que havia documentos que datavam desde o século XVII. Entre provisões reais relativas ao Brasil e de outras regiões do Império português, pedidos de clemência, nomeações de integrantes do CSMJ, processos judiciais, cartas de seguro, Conselhos de Investigação, Conselhos de Guerra, Comissões Militares, Juntas de Justiça Militar, entre tantas outras atividades desenvolvidas pelo Conselho em sua vertente judicial, foram registradas em torno de seiscentas documentos.

A elaboração da planilha

Diante de tão volumosa documentação, a opção foi sistematizá-la em perspectiva cronológica. Assim, Angela Moreira elaborou uma planilha Excel, alimentada com os documentos encontrados, organizados sob as seguintes variáveis: Instituição arquivística; Fundo/Coleção; Identificação do maço; Notação no documento; Dia/Mês/Ano do documento; Palavras-chave; Ementa do documento; Observações; Local (Cidade/Província/Estado/País). O esforço hercúleo de leitura, seleção, fotografia e registro tão minucioso desses documentos foi fundamental para ampliar a percepção da equipe acerca de temas e questões que até então não haviam aparecido. O léxico presente na documentação era tão rico e, ao mesmo tempo, desconhecido, que o simples registro e a recorrência com que aparecia na documentação já eram questões dignas de atenção e análise. Paralelamente à estrutura fixa do CSMJ, por exemplo, a justiça militar contou com instâncias ad hoc, temporárias e fluidas, que eram criadas para atuar em determinadas conjunturas e depois desfeitas. Documentos sobre as chamadas “Comissões Militares” e sobre as “Juntas de Justiça Militar”, ao mesmo tempo que causavam estranheza, revelavam que a intrincada teia de estruturação, atuação e alcance do foro militar mostrava-o em relação direta com eventos importantes da história do país e o inscrevia em momentos como a Confederação do Equador e a Guerra do Paraguai, por exemplo.
Finda a extenuante pesquisa no fundo “Diversos GIFI Caixas e Códices”, passamos a buscar documentos em outros fundos do próprio Arquivo Nacional que nos ajudassem a elaborar um levantamento mais completo da documentação sobre a justiça militar e que nos levassem, inclusive, para o período republicano. Assim, também foram encontrados documentos nos fundos “IG 1 – Série Guerra – Decretos e Requerimentos de comutações de militares (1822-1872) / V. 1”, “IG 1 – Série Guerra – Decretos e Requerimentos de perdões de militares (1816-1854) / V. 1”, “Auditoria Geral da Marinha” / Processos criminais; contrabando de africanos”, “IG 1 – Série Guerra – Gabinete do Ministro” e “Supremo Tribunal Militar” (BW).
Depois dessa investigação no Arquivo Nacional, passamos para outros arquivos e repositórios, como Arquivo da Marinha, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, FGV CPDOC, além dos Relatórios dos Ministérios da Guerra e da Marinha, disponíveis no site do Center for Research Libraries (http://ddsnext.crl.edu/brazil). Desse esforço de pesquisa, o banco de dados até então elaborado contava com cerca de mil e setecentas entradas de documentos identificados.

Refinando os indexadores

Ainda que tivéssemos começado a visualizar as movimentações cotidianas do órgão, a partir daqueles papeis bastante reveladores, mas muitas vezes em frágil estado de conservação, nos faltava uma espécie de arquitetura de como aquele órgão havia sido moldado para existir e agir. Esse vislumbre mais panorâmico nos permitiria, inclusive, compreender lacunas, desvios, excessos, arbítrios e ilegalidades presentes na rotina da instituição. A profusão de nomes, datas, locais, pedidos, decisões, muitas vezes ilegíveis, precisavam ser inseridas naquela edificação, a fim de serem melhor apreendidas e interpretadas.
Foi então que surgiu a ideia de pesquisar a legislação brasileira pertinente à existência e funcionamento da justiça militar, de 1808 ao início dos anos 2000, e cruzá-la com a documentação cotejada. Tal trabalho também não seria fácil. Recorrendo à base informatizada da legislação brasileira, disponível no site do Senado Federal, começamos a pesquisa a partir de termos indexadores mais óbvios, alguns decorrentes inclusive da pesquisa nos arquivos: “Justiça Militar”, “Conselho Supremo Militar e de Justiça”, “Supremo Tribunal Militar”, “Superior Tribunal Militar”, “Comissão Militar”, “Conselho de Guerra”, “Auditoria Militar”, “Junta de Justiça Militar”. Nesse primeiro momento, obtivemos um retorno documental legislativo que nos ajudava a montar as peças que moldavam a estrutura da justiça militar ao longo dos anos e, por que não dizer, dos séculos. A opção, nesse momento, foi manter a disposição cronológica da volumosa documentação levantada, inserindo a legislação produzida pelo Poder Executivo ou Legislativo entre os documentos que já haviam sido catalogados. A visão de conjunto foi surpreendente. Após esse primeiro olhar para a legislação, começamos a refinar os indexadores, buscando termos correlatos como “crime militar”, “deserção”, “insubordinação”, “crime político”, “perdão”, “graça”, “galés”, “pena de morte”, “Código Penal Militar”, “Código da Armada”, “julgamentos de civis”, entre tantos outros.

Tal especificação adveio muito da manipulação dos documentos encontrados nos arquivos e da constatação de que havia dois aspectos recorrentemente presentes em conjunturas diversas: a imprecisa definição do que eram os crimes militares e os crimes políticos, assim como qual seria o alcance da justiça militar em relação ao julgamento de militares e de civis. Vale dizer que essa também foi uma característica que atravessou os séculos de história do foro militar. Sem dúvida, tal questão nos levou diretamente a acompanhar a discussão sobre a elaboração de Códigos específicos para o julgamento dos militares ou dos crimes militares. Portanto, foi esse ponto que nos fez enumerar termos indexadores que retratassem – no formato de carta imperial, lei, decreto, decreto-lei, entre outros institutos legislativos – o estado da arte da matéria, em períodos distintos.

Em termos práticos de elaboração do banco de dados, o resultado desse debruçar-se sobre a legislação brasileira foi a identificação de aproximadamente quinhentos dispositivos legislativos que dialogavam, de alguma maneira, com a documentação previamente levantada. Entretanto, a confecção do banco de dados não parou aí. Tampouco se encerrou com a finalização desse projeto de pesquisa.

Ampliando o Banco de Dados

Finalizávamos o projeto coletivo com a certeza de que tínhamos apenas iniciado o trabalho, aberto e mapeado um vasto campo de investigações. Em função disso, cada pesquisador acabou desenvolvendo – por mais ou menos tempo – pesquisas solo sobre a temática. Quem realizou pesquisa de maior fôlego foi Angela Moreira, que defendeu em 2011 sua tese de doutoramento (CAPES) sobre a atuação do Superior Tribunal Militar (STM) no processo de construção de uma nova ordem jurídica e no julgamento de crimes militares, políticos e político-militares entre os anos de 1964 e 1980. Doutorada na temática justiça militar, Angela Moreira não só teve a oportunidade de refinar o Banco de Dados, como de mantê-lo atualizado pelo acompanhamento dos debates públicos. Já Adriana Barreto de Souza, instigada pela absoluta falta de investigações sobre a justiça militar no século XIX, decidiu avançar um pouco mais, elaborando e coordenando alguns projetos de pesquisa. Importante ressaltar, todos com financiamento público. Foi nesse trabalho, que envolvia alunos de graduação por meio de bolsas de iniciação científica (FAPERJ e CNPq), que conseguiu ampliar o Banco de Dados para o setecentos e o oitocentos. Igor Juliano Andrade, inicialmente como bolsista de iniciação científica e depois como mestrando (CAPES), com dissertação defendida em 2017 sobre a Seção de Guerra e Marinha do Conselho de Estado, dedicou-se a levantar, entender e lançar no Banco de Dados uma pluralidade de avisos, decretos e alvarás que se sobrepunham ao longo do tempo sem se anularem, procedimento típico da lógica jurídica de Antigo Regime.

Do diálogo entre essas pesquisas, resultado de parcerias ao longo dos últimos anos, surgiu esse Banco de Dados que ora tornamos público.